O mistério da criação: Deus realmente descansou?
"Antes da criação do universo, Deus não fez nada, não consta. Um dia, não se sabe porquê, decidiu criar o universo (também não se sabe porquê nem para quê). Fez, segundo a bíblia, o universo em seis dias. Seis dias só! Descansou ao sétimo, até hoje. Nunca mais fez nada. Isto faz algum sentido?"
A citação de José Saramago, apresentada acima, desafia a narrativa bíblica da criação do universo, questionando a lógica por trás da atividade divina. Ele levanta dúvidas sobre o que Deus teria feito antes da criação e, após os seis dias, pergunta se esse descanso eterno faz sentido. A provocação de Saramago insinua uma crítica à ideia de um Deus inativo após a criação, algo que pode ser visto como um questionamento à visão tradicional de um Deus sempre presente e atuante.
Essa reflexão nos convida a considerar diferentes visões da espiritualidade e da criação. Para muitos, a criação do universo não se limita a um evento pontual; ao contrário, pode ser vista como um processo contínuo de evolução e intervenção divina. Na Bíblia, por exemplo, embora o Gênesis descreva que Deus descansou no sétimo dia, essa "pausa" não significa que Ele tenha abandonado a criação. O Salmo 121:4 afirma que "o guarda de Israel não dormita nem dorme", indicando que a presença divina é constante.
Além disso, filósofos como São Tomás de Aquino também argumentaram que Deus não está sujeito ao tempo como os humanos. Sua criação é contínua, sustentando a existência do universo a cada instante. Para Aquino, a criação não é um ato terminado, mas algo em perpetuação, com Deus mantendo o cosmos e todas as coisas dentro dele em movimento.
Saramago, porém, com seu estilo irônico, nos força a refletir sobre os paradoxos do entendimento humano acerca do divino. A crítica dele, embora provocativa, toca em um ponto importante sobre a dificuldade de compreensão dos desígnios e ações de um ser transcendente. A teologia cristã frequentemente lida com esses mistérios através do conceito de fé — aceitação de que nem tudo pode ser compreendido pela lógica humana. Como o próprio Saramago admite em outros textos, sua descrença no Deus bíblico é, em parte, uma resposta à insuficiência das explicações oferecidas pelas religiões organizadas.
No entanto, essa citação também pode ser um convite para repensar nossa percepção de Deus e do universo. Será que o verdadeiro sentido da criação e do "descanso" divino reside em algo que transcende o entendimento racional? Talvez Deus não esteja "inativo", como sugere Saramago, mas sim operando de maneiras que nossa compreensão limitada não consegue captar. Para alguns, Deus age através das leis da natureza, da evolução, da consciência humana, sendo que cada descoberta científica seria uma forma de revelar o mistério divino.
Essa discussão leva a uma reflexão maior sobre a espiritualidade. Será que a presença de Deus é perceptível apenas nas ações diretas e miraculosas, ou Ele se manifesta nas sutilezas da vida cotidiana, na beleza do cosmos, nos atos de bondade entre as pessoas? Talvez, como muitos filósofos e teólogos acreditam, o divino seja mais um processo de interação contínua com a criação do que um evento histórico encerrado. Afinal, a espiritualidade não é algo estagnado, mas um caminho de descoberta constante.
Saramago, com sua sagacidade, nos impele a buscar essas respostas. A fé, nesse contexto, pode ser vista não como uma aceitação cega, mas como uma jornada de questionamento profundo, onde o mistério da criação e do divino se desdobra de maneira que vai além do simples entendimento racional.
Será que, no fundo, o verdadeiro mistério não reside naquilo que ainda não fomos capazes de compreender sobre o papel contínuo de Deus na criação?
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