Eutanásia: entre a dignidade humana e a soberania divina


A discussão sobre a legalização da eutanásia, como levantada por Drauzio Varella, convida a uma reflexão profunda sobre sofrimento, autonomia e a dignidade no fim da vida. A proposta de permitir a antecipação voluntária da morte por meio de métodos médicos busca respeitar a liberdade individual, especialmente quando a vida é marcada por dor insuportável ou perda de sentido. No entanto, a questão não se resume apenas a ética e medicina – ela também toca em princípios espirituais e religiosos que influenciam o entendimento da vida e da morte.

De um ponto de vista filosófico, a defesa da eutanásia é um ato de reconhecimento da autonomia pessoal. Como John Stuart Mill escreveu em Sobre a Liberdade, cada indivíduo é soberano sobre seu corpo e mente, desde que suas ações não prejudiquem terceiros. Assim, se um paciente consciente decide que sua existência se tornou insuportável, negar-lhe a eutanásia pode ser visto como uma forma de violência moral. Nos países como Holanda e Bélgica, a lei já permite que, além de doenças terminais, sofrimentos psíquicos irreversíveis sejam critérios para essa decisão.

No entanto, quando olhamos para a perspectiva cristã, a questão ganha contornos delicados. A Bíblia ensina que a vida é um dom de Deus e que o tempo de vivê-la e de partir está sob Sua soberania. No livro de Eclesiastes, lemos: “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu: tempo de nascer e tempo de morrer” (Eclesiastes 3:1-2). Esse texto nos lembra que a existência humana faz parte de uma ordem maior, na qual o controle sobre a vida e a morte pertence a Deus. Diante disso, alguns cristãos defendem que abreviar a vida seria uma forma de desrespeitar esse plano divino.

Por outro lado, a compaixão é um valor central na mensagem cristã. Jesus, ao longo de seu ministério, demonstrou empatia por aqueles que sofriam, curando enfermos e aliviando dores físicas e espirituais. O apóstolo Paulo também reconheceu que há situações em que o sofrimento pode parecer insuportável, como revela em sua carta aos Filipenses: “Para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro” (Filipenses 1:21). Embora o texto de Paulo não seja uma defesa da eutanásia, ele expressa o desejo de libertação diante do sofrimento extremo, algo que muitos pacientes terminais também sentem. A questão que se coloca é: será que, em alguns casos, a compaixão cristã pode incluir respeitar o desejo de partir em paz?

No Brasil, a situação é mais complexa. Mesmo que o paciente tenha o direito de recusar tratamentos médicos, como o uso de sondas ou respiradores, é comum que médicos e familiares insistam em prolongar uma existência já esvaziada de dignidade. Em situações de demência avançada, como mencionou Drauzio, o paciente já não reconhece seus entes queridos, vivendo apenas biologicamente. Alguns teólogos argumentam que prolongar essa vida pode ser uma forma de encarniçamento terapêutico, ou seja, o uso exagerado de procedimentos que não curam, mas apenas estendem o sofrimento. Isso levanta a dúvida: até que ponto prolongar a vida artificialmente seria respeitar o plano de Deus ou apenas uma forma de evitar o luto dos que ficam?

A Bíblia não oferece uma resposta explícita sobre eutanásia, pois esse é um debate moderno. No entanto, ela nos orienta a praticar misericórdia e justiça, buscando o equilíbrio entre a reverência à vida e o alívio do sofrimento. O desafio é encontrar uma posição que não reduza a existência humana a meros procedimentos médicos, mas que também reconheça a liberdade e a dignidade de cada pessoa. Albert Camus, em O Mito de Sísifo, escreveu que "o único problema filosófico verdadeiramente sério é o suicídio", pois ele revela a decisão última sobre se vale a pena ou não continuar vivendo. No contexto da eutanásia, essa decisão é feita de maneira consciente, em busca de paz para quem já não encontra esperança.

Assim, a escolha entre prolongar uma vida sem qualidade ou permitir uma morte digna não deve ser uma imposição do Estado, da família ou da sociedade. Cada pessoa deve ter o direito de decidir seu próprio destino, com base em seus valores e crenças – seja na confiança na ciência, na autonomia pessoal, ou na fé em um plano divino que transcende nosso entendimento. Como disse o apóstolo Paulo: “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm” (1 Coríntios 6:12). A sabedoria está em encontrar esse equilíbrio: permitir que cada indivíduo possa escolher seu caminho, respeitando tanto sua liberdade quanto sua fé.

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