Lutando pela humanidade em tempos de crise: uma reflexão sobre Saramago


José Saramago, em seu Ensaio sobre a cegueira, nos presenteia com uma das frases mais poderosas sobre a condição humana: “Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais.” Nesse pensamento, ele nos desafia a manter a essência da nossa humanidade mesmo quando as circunstâncias ao redor parecem nos empurrar para a degradação. Em tempos de crise, seja ela social, econômica ou moral, essa frase se torna um convite para refletirmos sobre a nossa postura e sobre os valores que escolhemos sustentar.

No romance, uma misteriosa cegueira toma conta de uma cidade, e as pessoas, incapazes de enxergar, revelam suas piores facetas. Instintos básicos e comportamentos animalescos começam a predominar, revelando que, sem um código moral ou uma visão clara da vida, nos aproximamos do que é mais primitivo. Saramago usa a cegueira como metáfora para a perda de empatia e de valores humanos. Quando não vemos o outro, deixamos de tratá-lo com a dignidade que merece. Nessa linha, a frase nos recorda que o nosso esforço deve ser diário e constante para não cairmos nas garras do egoísmo, da brutalidade e da indiferença.

Essa reflexão ecoa em diversas tradições filosóficas. O filósofo alemão Immanuel Kant nos ensinou que o que nos distingue como seres humanos é a capacidade de agir segundo princípios racionais e universais. Para Kant, devemos tratar o outro não como um meio para nossos fins, mas como um fim em si mesmo. Isso significa que, independentemente das circunstâncias, a nossa dignidade deve ser preservada através do respeito e da compaixão. É exatamente isso que Saramago nos alerta em seu livro: mesmo quando tudo ao nosso redor convida à violência e à desumanização, devemos resistir a essa tentação.

A Bíblia também nos ensina sobre a importância da dignidade humana. Em Gênesis 1:27, somos lembrados de que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus. Essa imagem divina em cada um de nós reforça a importância de tratarmos uns aos outros com respeito, pois, ao desumanizar o outro, estamos, em última instância, negando a nossa própria humanidade. Jesus, em seus ensinamentos, constantemente nos chama ao amor ao próximo, como no Evangelho de João 13:34, onde Ele diz: "Amem-se uns aos outros como eu os amei". Esse mandamento nos recorda que o amor e a compaixão são o verdadeiro antídoto contra a cegueira moral.



Voltando à obra de Saramago, vemos como o autor nos apresenta uma sociedade que, ao perder a visão física, perde também a visão moral. Os personagens enfrentam a fome, a desordem e a violência, e, em meio a esse caos, alguns sucumbem à selvageria, enquanto outros tentam, a todo custo, preservar sua humanidade. Esse é o ponto central da frase de Saramago: mesmo quando não conseguimos ser perfeitos ou íntegros em todos os aspectos, devemos, no mínimo, evitar a degradação completa. Esse esforço é o que nos mantém como seres humanos.

O filósofo Jean-Paul Sartre, famoso por sua visão existencialista, afirmava que “o homem está condenado a ser livre”. Ou seja, sempre temos escolhas, e essas escolhas moldam quem somos. No contexto de Ensaio sobre a cegueira, os personagens, mesmo sob condições extremas, têm a liberdade de escolher entre agir como humanos ou como animais. Sartre sugere que, ao escolhermos nossas ações, estamos definindo nossa essência. Assim, o esforço para não viver como animais é uma luta constante, mas necessária, para preservar nossa humanidade.

Nos dias de hoje, enfrentamos nossos próprios "ensaios sobre a cegueira". Pandemias, crises econômicas e polarizações sociais nos empurram para situações em que a empatia parece cada vez mais escassa. Como Saramago, devemos nos perguntar: estamos agindo como seres humanos, buscando dignidade e respeito, ou estamos deixando que as circunstâncias nos transformem em algo menos que isso? A resposta depende das escolhas que fazemos diariamente.

Viver como seres humanos completos não significa a perfeição, mas sim a busca contínua por compaixão, justiça e respeito. Mesmo quando falhamos, devemos nos lembrar de que a verdadeira queda está em desistir de tentar. Como Saramago nos ensinou, resistir ao chamado da selvageria é um dever moral que devemos a nós mesmos e aos outros. Só assim evitaremos a verdadeira cegueira — aquela que afeta a alma e nos impede de ver o outro como um reflexo de nossa própria humanidade.

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